O objetivo agora não é só passar conteúdos, mas
preparar — todos — para a vida na sociedade moderna
PERRENOUD, Philippe. Construindo
competências. Nova Escola, São Paulo, n. 135, set. 2000. Entrevista concedida a
Paola Gentile e Roberta Bencini. brasil
Desenvolver
competências nos alunos é a palavra de ordem da educação moderna. Para formar
pessoas preparadas para a nova realidade social e do trabalho, o professor eiro
enfrenta o desafio de mudar sua postura frente à classe, ceder tempo de aula
para atividades que integrem diversas disciplinas e estar disposto a aprender
com a turma.
De nada adianta, porém, exigir mudança
do docente se a escola não diminuir o peso dos conteúdos disciplinares e a
sociedade não se empenhar em definir quais competências quer que seus
estudantes desenvolvam. É isso que defende o sociólogo suíço Philippe
Perrenoud, doutor em Sociologia e Antropologia, professor da Universidade de
Genebra e especialista em práticas pedagógicas e instituições de ensino. Autor
do livro Dez Novas Competências para Ensinar, ele concedeu por e-mail a
seguinte entrevista exclusiva.
NOVA ESCOLA> De onde vem a ideia de
competência na educação?
Philippe Perrenoud < A abordagem por competências é uma
maneira de levar a sério um problema antigo, o de transferir conhecimentos. Em
geral, a escola se preocupa mais com ingredientes de certas competências e
menos em colocá-las em sinergia nas situações complexas. Durante a escolaridade
básica, aprende-se a ler, escrever, contar, mas também a raciocinar, explicar,
resumir, observar, comparar, desenhar e dúzias de outras capacidades gerais.
Assimilam-se conhecimentos disciplinares, como Matemática, História, Ciências,
Geografia etc. Mas a escola não tem a preocupação de ligar esses recursos a
situações da vida. Quando se pergunta por que se ensina isso ou aquilo, a
justificativa é geralmente baseada nas exigências da seqüência do curso:
ensina-se a contar para resolver problemas; aprende-se gramática para redigir
um texto. Quando se faz referência à vida, apresenta-se um lado muito global:
aprende-se para se tornar um cidadão, para se virar na vida, ter um bom
trabalho, cuidar da saúde. A transferência e a mobilização das capacidades e
dos conhecimentos não caem do céu. É preciso trabalhá-las e treiná-las, e isso
exige tempo, etapas didáticas e situações apropriadas, que hoje não existem.
NE> Ou seja, a escola não prepara o
aluno para usar o conhecimento no seu dia-a-dia?
Perrenoud< Exatamente. Os alunos acumulam saberes,
passam nos exames, mas não conseguem mobilizar o que aprenderam em situações
reais, no trabalho e fora dele (em família, na cidade, no lazer etc.). Isso é
grave para aqueles que freqüentam aulas somente por alguns anos. A escola
básica não deve ser uma preparação para estudos longos. Deve-se enxergá-la como
uma preparação de todos para a vida. Formulando-se mais explicitamente os
objetivos da formação em termos de competências, lutamos abertamente contra a
tentação da escola de ensinar por ensinar, de marginalizar as referências às
situações da vida e de não reservar tempo para treinar a mobilização dos
saberes para situações complexas.
NE> Quais as competências que os
alunos devem ter adquirido ao terminar a escolarização?
Perrenoud< Essa é uma escolha da sociedade, que
deve ser baseada em um conhecimento amplo e atualizado das práticas sociais.
Não basta nomear uma comissão de redação para se elaborar um conjunto de
competências. Certos países contentaram-se em reformular os programas
tradicionais, colocando um verbo de ação na frente dos saberes disciplinares.
Onde se lia "ensinar o teorema de Pitágoras", agora lê-se
"servir-se do teorema de Pitágoras para resolver problemas de
geometria". Isso é maquiagem. A descrição de competências deve partir da
análise de situações, da ação, e disso derivar conhecimentos. Os países que
querem ir rápido demais se lançam na elaboração de programas sem dedicar tempo
à observação das práticas sociais, sem identificar situações com as quais as
pessoas são e serão verdadeiramente confrontadas. O que sabemos das
competências que precisam um desempregado, um imigrante, um portador de
deficiência, uma mãe solteira, um jovem da periferia? Se o sistema educativo
não perder tempo reconstruindo a transposição didática (a transformação de um
conhecimento científico em conhecimento escolar), não questionará as
finalidades da escola e se contentará em verter antigos conteúdos dentro de um
novo recipiente. Sob a capa de competências, dá-se ênfase a capacidades sem
contexto. Resultado: conserva-se o essencial dos saberes necessários aos
estudos longos e os lobbies disciplinares ficam satisfeitos.
NE> O que é preciso fazer para que a
formação geral acompanhe os objetivos da profissional em termos de competência?
Perrenoud< Eu tentei um exercício para identificar
os saberes fundamentais para a autonomia das pessoas. Cheguei a oito grandes
categorias: saber identificar, avaliar e valorizar suas possibilidades, seus
direitos, seus limites e suas necessidades; saber formar e conduzir projetos e
desenvolver estratégias, individualmente ou em grupo; saber analisar situações,
relações e campos de força de forma sistêmica; saber cooperar, agir em sinergia,
participar de uma atividade coletiva e partilhar liderança; saber construir e
estimular organizações e sistemas de ação coletiva do tipo democrático; saber
gerenciar e superar conflitos; saber conviver com regras, servir-se delas e
elaborá-las; saber construir normas negociadas de convivência que superem as
diferenças culturais. Em cada uma dessas grandes categorias, é preciso ainda
especificar concretamente os grupos de situações. Por exemplo: saber
desenvolver estratégias para manter o emprego em situações de reestruturação de
uma empresa. A formulação de competências afasta-se, então, das abstrações
ideologicamente neutras. De pronto, a unanimidade está ameaçada, e reaparece a
ideia de que os objetivos da escolaridade dependem de uma escolha da sociedade.
NE> Nesse contexto, quais são as
mudanças no papel do professor?
Perrenoud< É inútil exigir esforços sobre-humanos
dos professores se o sistema educativo apenas adota a linguagem das
competências, sem mudar nada de fundamental. O melhor indício de uma mudança
profunda é a diminuição do peso dos conteúdos disciplinares e uma avaliação
formativa e certificativa, orientada claramente para as competências. As
competências não dão as costas para os saberes, mas não se pode pretender
desenvolvê-las sem dedicar o tempo necessário para colocá-las em prática. Não
basta juntar uma situação de transferência no final de cada capítulo de um
curso convencional. Para o sistema mudar, é preciso reformular seus programas
em termos de desenvolvimento de competências verdadeiras, liberar disciplinas,
introduzir os ciclos de aprendizagem plurianuais ao longo do curso, chamar para
a cooperação profissional e convidar o professor para uma pedagogia
diferenciada, mudando, então, sua representação e sua prática.
NE> O que o professor deve fazer
para modificar sua prática?
Perrenoud< Para desenvolver competências é
preciso, antes de tudo, trabalhar por resolução de problemas e por projetos,
propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar seus
conhecimentos e, em certa medida, completá-los. Isso pressupõe uma pedagogia
ativa, cooperativa, aberta para a cidade ou para o bairro, seja na zona urbana
ou rural. Os professores devem parar de pensar que dar o curso é o cerne da
profissão. Ensinar, hoje, deveria ser conceber, encaixar e regular situações de
aprendizagem, seguindo os princípios pedagógicos ativos construtivistas. Para
os adeptos dessa visão interativa da aprendizagem, trabalhar no desenvolvimento
de competências não é uma ruptura. O obstáculo está mais em cima: como levar os
professores, habituados a cumprir rotinas, a repensar sua profissão? Eles não
desenvolverão competências se não se perceberem como organizadores de situações
didáticas e de atividades que tenham sentido para os alunos, envolvendo-os e,
ao mesmo tempo, gerando aprendizagens fundamentais.
NE> Quais são as qualidades
profissionais que o professor deve ter para ajudar os alunos a desenvolver
competências?
Perrenoud< Antes de ter competências técnicas, ele
deveria ser capaz de identificar e de valorizar suas próprias competências,
dentro de sua profissão e de outras práticas sociais. Isso exige um trabalho
sobre sua relação com o saber. Muitas vezes, o professor é alguém que ama o
saber pelo saber, que é bem-sucedido na escola, que tem uma identidade
disciplinar forte desde o Ensino Médio. Ora, os alunos não são e não querem ser
como ele. O professor deve, então, se colocar no lugar desses alunos. Aí ele
começará a procurar meios de interessar sua turma pelo saber — não como algo em
si mesmo, mas como ferramentas para compreender o mundo e agir sobre ele. O
principal recurso do professor é a postura reflexiva, sua capacidade de
observar, de regular, de inovar, de aprender com os
outros,
com os alunos, com a experiência. Mas, com certeza, existem capacidades mais
precisas.
NE> Como o professor deve empregar
as disciplinas dentro desse conceito?
Perrenoud< Não se trata de renunciar às
disciplinas, que são os campos do saber, estruturados e estruturantes. No
Ensino Fundamental, é preciso preservar a polivalência dos professores, não
"secundarizar" a escola básica. No Ensino Médio, pode-se desejar a
não compartimentalização precoce e estanque, com professores menos
especializados, menos fechados dentro de uma só área, dizendo ignorar as outras.
É importante ainda não dedicar todo o tempo escolar às disciplinas, deixando
espaços para as encruzilhadas interdisciplinares e as atividades de integração.
NE> Como deve ser a avaliação em uma
escola orientada para o desenvolvimento de competências?
Perrenoud< Ninguém formará competências na
escolaridade básica se não forem exigidas competências no momento da
certificação. A avaliação é o que realmente conta. É preciso avaliar seriamente
as competências, mas isso não pode ser feito com testes escritos. São
essenciais os problemas complexos e as tarefas contextualizadas, dentro de uma
série de condições
NE> Em quanto tempo é possível
perceber resultados dessas mudanças no sistema de ensino?
Perrenoud< Antes de avaliar as mudanças é melhor
colocá-las em operação. Isso levará anos, se for um trabalho sério. Pior é
acreditar que as práticas de ensino e aprendizagem mudam por decreto. As
mudanças exigidas passarão por uma espécie de revolução cultural, que será
vivida pelos professores, depois pelos alunos e seus pais. Quando as práticas
forem alteradas em larga escala, a mudança exigirá ainda anos para dar frutos
visíveis, pois será preciso esperar que mais de uma geração de estudantes tenha
passado por todos os ciclos. Enquanto se espera, é melhor implementar e
acompanhar as mudanças do que procurar provas prematuras de sucesso.
NE> O que uma reforma dessa natureza
pode fazer por um país como o Brasil?
Perrenoud< Seu país confronta-se com o desafio de
escolarização de crianças e adolescentes e de formação de professores
qualificados em todas as regiões. Há também a questão da reprovação e da
evasão. A abordagem por competências não vai resolver esses problemas num passe
de mágica. Entretanto, não vamos negligenciar três suportes dessa abordagem,
caso ela atenda suas ambições. Ela pode aumentar o sentido de trabalho escolar
e modificar a relação com o saber dos alunos em dificuldade; favorecer as
aproximações construtivistas, a avaliação formativa, a pedagogia diferenciada,
que vai facilitar a assimilação ativa dos saberes; colocar os professores em
movimento, incitando-os a falar de pedagogia e a cooperar no quadro de equipes
ou de projetos do estabelecimento escolar. Por isso, é sensato integrar desde
já as abordagens por competências à formação — inicial e contínua — e à
identidade profissional dos professores. Não nos esqueçamos de que, no final
das contas, o objetivo principal é democratizar o acesso ao saber e às
competências. Todo o resto é apenas um meio de atingir esse objetivo.
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