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terça-feira, 8 de março de 2016

Construindo competências



O objetivo agora não é só passar conteúdos, mas preparar — todos — para a vida na sociedade moderna


PERRENOUD, Philippe. Construindo competências. Nova Escola, São Paulo, n. 135, set. 2000. Entrevista concedida a Paola Gentile e Roberta Bencini. brasil


Desenvolver competências nos alunos é a palavra de ordem da educação moderna. Para formar pessoas preparadas para a nova realidade social e do trabalho, o professor eiro enfrenta o desafio de mudar sua postura frente à classe, ceder tempo de aula para atividades que integrem diversas disciplinas e estar disposto a aprender com a turma.
De nada adianta, porém, exigir mudança do docente se a escola não diminuir o peso dos conteúdos disciplinares e a sociedade não se empenhar em definir quais competências quer que seus estudantes desenvolvam. É isso que defende o sociólogo suíço Philippe Perrenoud, doutor em Sociologia e Antropologia, professor da Universidade de Genebra e especialista em práticas pedagógicas e instituições de ensino. Autor do livro Dez Novas Competências para Ensinar, ele concedeu por e-mail a seguinte entrevista exclusiva.

NOVA ESCOLA> De onde vem a ideia de competência na educação?
Philippe Perrenoud < A abordagem por competências é uma maneira de levar a sério um problema antigo, o de transferir conhecimentos. Em geral, a escola se preocupa mais com ingredientes de certas competências e menos em colocá-las em sinergia nas situações complexas. Durante a escolaridade básica, aprende-se a ler, escrever, contar, mas também a raciocinar, explicar, resumir, observar, comparar, desenhar e dúzias de outras capacidades gerais. Assimilam-se conhecimentos disciplinares, como Matemática, História, Ciências, Geografia etc. Mas a escola não tem a preocupação de ligar esses recursos a situações da vida. Quando se pergunta por que se ensina isso ou aquilo, a justificativa é geralmente baseada nas exigências da seqüência do curso: ensina-se a contar para resolver problemas; aprende-se gramática para redigir um texto. Quando se faz referência à vida, apresenta-se um lado muito global: aprende-se para se tornar um cidadão, para se virar na vida, ter um bom trabalho, cuidar da saúde. A transferência e a mobilização das capacidades e dos conhecimentos não caem do céu. É preciso trabalhá-las e treiná-las, e isso exige tempo, etapas didáticas e situações apropriadas, que hoje não existem.

NE> Ou seja, a escola não prepara o aluno para usar o conhecimento no seu dia-a-dia?
Perrenoud< Exatamente. Os alunos acumulam saberes, passam nos exames, mas não conseguem mobilizar o que aprenderam em situações reais, no trabalho e fora dele (em família, na cidade, no lazer etc.). Isso é grave para aqueles que freqüentam aulas somente por alguns anos. A escola básica não deve ser uma preparação para estudos longos. Deve-se enxergá-la como uma preparação de todos para a vida. Formulando-se mais explicitamente os objetivos da formação em termos de competências, lutamos abertamente contra a tentação da escola de ensinar por ensinar, de marginalizar as referências às situações da vida e de não reservar tempo para treinar a mobilização dos saberes para situações complexas.

NE> Quais as competências que os alunos devem ter adquirido ao terminar a escolarização?
Perrenoud< Essa é uma escolha da sociedade, que deve ser baseada em um conhecimento amplo e atualizado das práticas sociais. Não basta nomear uma comissão de redação para se elaborar um conjunto de competências. Certos países contentaram-se em reformular os programas tradicionais, colocando um verbo de ação na frente dos saberes disciplinares. Onde se lia "ensinar o teorema de Pitágoras", agora lê-se "servir-se do teorema de Pitágoras para resolver problemas de geometria". Isso é maquiagem. A descrição de competências deve partir da análise de situações, da ação, e disso derivar conhecimentos. Os países que querem ir rápido demais se lançam na elaboração de programas sem dedicar tempo à observação das práticas sociais, sem identificar situações com as quais as pessoas são e serão verdadeiramente confrontadas. O que sabemos das competências que precisam um desempregado, um imigrante, um portador de deficiência, uma mãe solteira, um jovem da periferia? Se o sistema educativo não perder tempo reconstruindo a transposição didática (a transformação de um conhecimento científico em conhecimento escolar), não questionará as finalidades da escola e se contentará em verter antigos conteúdos dentro de um novo recipiente. Sob a capa de competências, dá-se ênfase a capacidades sem contexto. Resultado: conserva-se o essencial dos saberes necessários aos estudos longos e os lobbies disciplinares ficam satisfeitos.

NE> O que é preciso fazer para que a formação geral acompanhe os objetivos da profissional em termos de competência?
Perrenoud< Eu tentei um exercício para identificar os saberes fundamentais para a autonomia das pessoas. Cheguei a oito grandes categorias: saber identificar, avaliar e valorizar suas possibilidades, seus direitos, seus limites e suas necessidades; saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias, individualmente ou em grupo; saber analisar situações, relações e campos de força de forma sistêmica; saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade coletiva e partilhar liderança; saber construir e estimular organizações e sistemas de ação coletiva do tipo democrático; saber gerenciar e superar conflitos; saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las; saber construir normas negociadas de convivência que superem as diferenças culturais. Em cada uma dessas grandes categorias, é preciso ainda especificar concretamente os grupos de situações. Por exemplo: saber desenvolver estratégias para manter o emprego em situações de reestruturação de uma empresa. A formulação de competências afasta-se, então, das abstrações ideologicamente neutras. De pronto, a unanimidade está ameaçada, e reaparece a ideia de que os objetivos da escolaridade dependem de uma escolha da sociedade.

NE> Nesse contexto, quais são as mudanças no papel do professor?
Perrenoud< É inútil exigir esforços sobre-humanos dos professores se o sistema educativo apenas adota a linguagem das competências, sem mudar nada de fundamental. O melhor indício de uma mudança profunda é a diminuição do peso dos conteúdos disciplinares e uma avaliação formativa e certificativa, orientada claramente para as competências. As competências não dão as costas para os saberes, mas não se pode pretender desenvolvê-las sem dedicar o tempo necessário para colocá-las em prática. Não basta juntar uma situação de transferência no final de cada capítulo de um curso convencional. Para o sistema mudar, é preciso reformular seus programas em termos de desenvolvimento de competências verdadeiras, liberar disciplinas, introduzir os ciclos de aprendizagem plurianuais ao longo do curso, chamar para a cooperação profissional e convidar o professor para uma pedagogia diferenciada, mudando, então, sua representação e sua prática.

NE> O que o professor deve fazer para modificar sua prática?
Perrenoud< Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por resolução de problemas e por projetos, propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar seus conhecimentos e, em certa medida, completá-los. Isso pressupõe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para a cidade ou para o bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de pensar que dar o curso é o cerne da profissão. Ensinar, hoje, deveria ser conceber, encaixar e regular situações de aprendizagem, seguindo os princípios pedagógicos ativos construtivistas. Para os adeptos dessa visão interativa da aprendizagem, trabalhar no desenvolvimento de competências não é uma ruptura. O obstáculo está mais em cima: como levar os professores, habituados a cumprir rotinas, a repensar sua profissão? Eles não desenvolverão competências se não se perceberem como organizadores de situações didáticas e de atividades que tenham sentido para os alunos, envolvendo-os e, ao mesmo tempo, gerando aprendizagens fundamentais.

NE> Quais são as qualidades profissionais que o professor deve ter para ajudar os alunos a desenvolver competências?
Perrenoud< Antes de ter competências técnicas, ele deveria ser capaz de identificar e de valorizar suas próprias competências, dentro de sua profissão e de outras práticas sociais. Isso exige um trabalho sobre sua relação com o saber. Muitas vezes, o professor é alguém que ama o saber pelo saber, que é bem-sucedido na escola, que tem uma identidade disciplinar forte desde o Ensino Médio. Ora, os alunos não são e não querem ser como ele. O professor deve, então, se colocar no lugar desses alunos. Aí ele começará a procurar meios de interessar sua turma pelo saber — não como algo em si mesmo, mas como ferramentas para compreender o mundo e agir sobre ele. O principal recurso do professor é a postura reflexiva, sua capacidade de observar, de regular, de inovar, de aprender com os
outros, com os alunos, com a experiência. Mas, com certeza, existem capacidades mais precisas.

NE> Como o professor deve empregar as disciplinas dentro desse conceito?
Perrenoud< Não se trata de renunciar às disciplinas, que são os campos do saber, estruturados e estruturantes. No Ensino Fundamental, é preciso preservar a polivalência dos professores, não "secundarizar" a escola básica. No Ensino Médio, pode-se desejar a não compartimentalização precoce e estanque, com professores menos especializados, menos fechados dentro de uma só área, dizendo ignorar as outras. É importante ainda não dedicar todo o tempo escolar às disciplinas, deixando espaços para as encruzilhadas interdisciplinares e as atividades de integração.

NE> Como deve ser a avaliação em uma escola orientada para o desenvolvimento de competências?
Perrenoud< Ninguém formará competências na escolaridade básica se não forem exigidas competências no momento da certificação. A avaliação é o que realmente conta. É preciso avaliar seriamente as competências, mas isso não pode ser feito com testes escritos. São essenciais os problemas complexos e as tarefas contextualizadas, dentro de uma série de condições

NE> Em quanto tempo é possível perceber resultados dessas mudanças no sistema de ensino?
Perrenoud< Antes de avaliar as mudanças é melhor colocá-las em operação. Isso levará anos, se for um trabalho sério. Pior é acreditar que as práticas de ensino e aprendizagem mudam por decreto. As mudanças exigidas passarão por uma espécie de revolução cultural, que será vivida pelos professores, depois pelos alunos e seus pais. Quando as práticas forem alteradas em larga escala, a mudança exigirá ainda anos para dar frutos visíveis, pois será preciso esperar que mais de uma geração de estudantes tenha passado por todos os ciclos. Enquanto se espera, é melhor implementar e acompanhar as mudanças do que procurar provas prematuras de sucesso.

NE> O que uma reforma dessa natureza pode fazer por um país como o Brasil? 


Perrenoud< Seu país confronta-se com o desafio de escolarização de crianças e adolescentes e de formação de professores qualificados em todas as regiões. Há também a questão da reprovação e da evasão. A abordagem por competências não vai resolver esses problemas num passe de mágica. Entretanto, não vamos negligenciar três suportes dessa abordagem, caso ela atenda suas ambições. Ela pode aumentar o sentido de trabalho escolar e modificar a relação com o saber dos alunos em dificuldade; favorecer as aproximações construtivistas, a avaliação formativa, a pedagogia diferenciada, que vai facilitar a assimilação ativa dos saberes; colocar os professores em movimento, incitando-os a falar de pedagogia e a cooperar no quadro de equipes ou de projetos do estabelecimento escolar. Por isso, é sensato integrar desde já as abordagens por competências à formação — inicial e contínua — e à identidade profissional dos professores. Não nos esqueçamos de que, no final das contas, o objetivo principal é democratizar o acesso ao saber e às competências. Todo o resto é apenas um meio de atingir esse objetivo. 

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