Como se pode pensar a
disciplina? Como estabelecer limites, de modo a promover crescimento e
autonomia? Estabelecer a disciplina pode ser um ato de afeto? Ou é um ato de
poder? ("Manda quem pode, obedece quem tem juízo" - afirma o dito
popular...).
Certamente estas questões já foram
alvo de reflexão por parte de muitos pais e professores que se vêem às voltas
com a desafiadora missão de educar.
Muito se tem discutido, nos dias
atuais, sobre as questões de disciplina e limites. Parece ser consenso entre
diferentes pensadores das relações humanas, a importância de se estabelecer
limites claros e bem definidos para propiciar condições seguras de
desenvolvimento para a geração mais jovem. Por outro lado, também muito se tem
falado de abusos de poder, de violência - física e moral - impetrada contra
filhos e alunos, sob a égide da mesma disciplina.
Não me admira que pais e professores
sintam-se hoje bastante confusos sobre quando e como corrigir, o que permitir e
o que proibir, como não serem acusados de omissos, nem tampouco de violentos ou
déspotas.
Para poder atender aos propósitos
deste artigo, deixarei de fora as considerações sobre o abuso da autoridade e
da imposição das regras, que conduz às patologias, da mesma forma que a ausência
ou a dificuldade em estabelecê-las. Tratarei aqui, apenas das considerações
sobre a possibilidade de colocar limites, como legítima expressão de interesse
e de afeto pelo outro.
Como estabelecer um equilíbrio entre
acolher e corrigir? Como proporcionar segurança através de regras claras e bem
definidas, sem destruir a criatividade e a iniciativa, condições tão
importantes para o crescimento? Penso que estes sejam os marcos balizadores
para aqueles que pretendem educar com afeto.
Com muita freqüência, seja na clínica,
atendendo Famílias, seja na Instituição Escolar, deparamo-nos com questões
relacionadas ao limite e à disciplina. O desafio que se impõe está,
sobremaneira, relacionado à forma de exercê-los com afeto.
Winnicott, pediatra inglês que se dedicou
a estudar o desenvolvimento infantil sob a óptica da Psicanálise, fala da mãe
suficientemente boa que, entre outras qualidades, é aquela que oferece um
holding para permitir o desenvolvimento saudável de seu bebê. Oferecer holding
é dar um limite seguro para a criança se desenvolver, limite este que precisa
continuar existindo, em diferentes níveis, na infância, no despertar da
adolescência e mesmo ao longo de todo Ciclo Vital. Mas, essa mãe, também
precisa ensinar seu bebê a tolerar frustrações e, desde cedo, perceber que
existem limites externos que ele - o bebê - não controla.
O limite, visto num prisma mais amplo,
é psicológico e socialmente estruturante. Ele dá a dimensão da realidade, diz o
que se pode ou não fazer/ser, onde começa o desejo e onde termina a
possibilidade de exercê-lo. E, assim, o sujeito constrói uma auto-imagem
interna, aprendendo a perceber a si mesmo em contexto, pois sua existência não
se dá senão em relação.
Alguns pais e professores indagam-se
como exercer esse holding com firmeza e ternura e fazer-se respeitar. Penso que
antes de tudo é preciso que eles mesmos se reconheçam como competentes e
acreditem que, na base da construção da disciplina e da colocação do limite,
está o afeto e o legítimo interesse pelo outro. Eu nomearia este estado de
autoridade interna.
Perceber-se na relação e perceber o
outro são passos igualmente importantes para se colocar limites. Indagações
como: Acredito no que estou impondo? Concordo com estas regras? (Chegar cedo em
casa é importante? Para quem?) O que eu penso/sinto com esta ordem? (Fizeram
comigo..., aprendi assim..., sinto-me confortável em repetir?) Por que exigir
este comportamento? (O que os outros vão pensar...?) podem ser de grande valia
para se negociar uma ordem, pois elas nos permitem entender o que realmente
desejamos e para quem este limite é estruturante.
Mas isto sem esquecer que, em cada
faixa etária, existem diferentes possibilidades de negociação. Isto é, de
conversas que tentam atingir uma decisão consensual e que beneficiem ambas as
partes. Para que uma negociação construída possa vir ter lugar, é preciso se
desenvolver uma escuta atenta e respeitosa do outro. Essa atitude costuma ser
muito eficiente, estabelecendo respeito e admiração entre quem manda e quem
obedece, mostrando-se especialmente válida para se trabalhar com adolescentes.
É claro que quanto menor for a
criança, mais difícil será estabelecer um leque de opções para o
que/quando/como deve ou não ser feito. Mas, mesmo assim, é interessante desde
cedo adotar esta prática dentro de parâmetros inteligíveis pela criança, pois
todos (mesmo os mais novinhos) apreciamos ser respeitados.
Interessante também é prestarmos
atenção no nosso discurso. Não é o que se diz, mas a emoção com que se fala que
define o dizer como uma ação. Um escutar que aceita o outro ou um escutar que o
rejeita ou o desqualifica levam a significados diferentes, definindo ações
diferentes na conversação. Os significados que se formam são coerentes com o
estado emocional de quem participa desta conversação. Assim, as ações na
linguagem estão totalmente entrelaçadas com as emoções que as sustentam.
De acordo com esta linha de
pensamento, pode-se dizer que colocar limites é uma ação que fundamenta-se em
uma emoção. Ela pode estar calcada numa aceitação do outro ou numa rejeição,
que por vezes implica numa desqualificação. Traz consigo uma carga afetiva que
é percebida pelo outro e que, portanto, desencadeia também uma resposta
afetiva.
Assim, estabelecer limites tem a ver
com estabelecer regras, normas, que não são escolhidas aleatoriamente, mas que
tem muito a ver com estados emocionais e com contextos socioculturais nos quais
emergem. Aceito que pensem diferente de mim? Como o outro vê/sente esta ordem?
Posso tolerar que ele não concorde? (O que não significa abrir mão de condutas
tidas como inegociáveis, apenas saber tolerar as diferentes visões de mundo).
Quando pais e professores percebem que
estão intimamente implicados com sua emoção no ato de disciplinar, podem se ver
fazendo parte do que eu nomearia de práticas dialógicas: conversações nas quais
o contexto é definido pelo pedido. Aí, então, estabelecer limites e disciplinar
podem ser entendidos como um ato de afeto, que respeita e legitima o outro,
proporcionando-lhe melhores condições de adaptação à realidade.
Concordo com Bowen quando afirma que o
desenvolvimento do ser humano é um processo de "diferenciação do
self", que é favorecido ao se estabelecer limites com afeto. Este é, ao
mesmo tempo, um conceito intrapsíquico e interpessoal. A diferenciação
intrapsíquica supõe a capacidade do sujeito de perceber sentimentos e pensamentos,
diferenciando os próprios dos alheios. A diferenciação interpessoal implica o
sujeito saber separar o eu do outro, podendo se ver em relação. Em ambos os
casos, pais e professores muito têm a contribuir, mas desde que estejam aptos a
educar, disciplinar e colocar limites de forma sintonizada com suas emoções e
com as emoções que despertam no outro.
Entendo que, em se tratando de
relações humanas, não existem regras prontas nem receitas, mas acredito no
poder da (auto)reflexão - saber fazer perguntas é uma arte! -, na força de se
ver implicado na situação, no desafio de perceber os próprios sentimentos e de
saber respeitar nossos interlocutores (mesmo que eles sejam bem mais jovens e
inexperientes). Estas práticas podem nos colocar na confortável posição de
co-construtores de cada situação singular que se apresenta nessa maravilhosa
experiência que é viver!
BIBLIOGRAFIA
In Se me ama não me ame, Mony Elkaim, 1998.
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